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OLHARES PRIVADOS

Há muitas maneiras de se ver “Olhares Privados”.
Cada imagem individual, cada papel impresso carrega uma história. No entanto, aqui, não temos acesso a elas, não identificamos claramente pessoas, lugares, nada. Quase tudo está parcial ou totalmente velado, exceto pelo rosto da própria Simone Cupello, quando criança, estampado no registro feito por seu pai. Nenhuma das fotos da exposição foi produzida pela artista; são provenientes de arquivos privados de diversas pessoas. Entretanto, todas as imagens da exposição foram criadas por ela. A fotografia é apenas uma das formas da imagem.

Há maneiras e maneiras.
Ao não revelar por completo a imagem fotográfica (preservando a identidade dos retratados), há uma certa privação do olhar. Há também uma reflexão sobre a fotografia, especialmente aquelas produzidas no âmbito particular, no que diz respeito à privacidade e ao desejo de exibição, memória e esquecimento. Estamos em uma época de selfies, onde imagens são produzidas e exibidas em grande quantidade, só que raramente vão para o papel. Nesta exposição, similarmente, ocorre uma espécie de apagamento das reminiscências das antigas fotografias impressas e não revisitadas. É pertinente questionar o que fica na memória e o que é perene, ainda que nada dure para sempre.

Há muitas maneiras de se olhar.
Na operação de Simone, a fotografia deixa de ser documento fotográfico e passa a evocar uma lembrança, transformando-se em uma espécie de memória da fotografia, não sendo mais uma simples memória fotográfica. A fotografia é usada por ela como material escultórico, manipulável fisicamente (e não em aparelho eletrônico, operação análoga, tão corriqueira hoje). E, mesmo que faça recordar um registro, este parece distante. Assim, Simone nos incita a olhar a materialidade da fotografia: o pigmento, o papel, seu verso, sua borda, os limites entre mundo e imagem.

Há como olhar e não ver.
Existem vários modos de se fazer um apagamento. A história está repleta deles. O artista dá a ver. Sua percepção das coisas aparece na obra, e isso é feito, muitas vezes, por aquilo que se apresenta, intencionalmente ou não, como diria Marcel Duchamp . É possível argumentar que, em arte, a clareza da imagem não é, necessariamente, relevante: prerrogativa dos artistas. Esconder para explicitar. Simone nos revela a sua visão – a visão dela –, de modo límpido. A artista afirma que trabalha com o deslocamento do lugar do observador, que seu objetivo é criar um só corpo imagético, uma só textura. “Por isso, faço a forma, para unificar o todo. O trabalho oscila entre a ideia de fragmentação e de unidade”, diz. Todavia, se oscila, mesmo estando visível, não é possível assimilar a imagem por completo.

Há muitas maneiras de encarar imagens.
Pode ser de frente, de lado, de soslaio... Simone mostra-as em camadas. É algo que, a meu ver, os olhos, sozinhos, não dão conta. Porque, a princípio, queremos reconhecer, nos identificar. Só que o que existe, no caso, são as esculturas, prenhes de imagens que formam outras imagens, em cascata. Acontece uma transição de uma experiência puramente do plano imagético, bidimensional, para uma restituição ao “mundo real”, em três dimensões. Podemos tocar a matéria, contudo não é possível segurar com as mãos as imagens. Espocam, no cérebro, em espiral, mais e mais visões, construídas, em parte, devido à falta de acesso completo à singularidade das fotografias, e causadas, igualmente, pelas formas que Simone constrói com elas. São imagens físicas criando imagens mentais.

Há um olhar privado para todas as coisas do mundo.
Cada um vê o que quer, ou o que é capaz. O espectador/fruidor/interlocutor/participante estabelece relação específica com uma obra. Embora nossos aparatos perceptivos sejam semelhantes, ver é um aprendizado mental. E os mistérios da mente são insondáveis em sua completude. Como diria o artista espanhol Francisco Goya, “o sonho da razão produz monstros” .

Não é preciso etiquetar para compreender, ver é esquecer os nomes.

Há um tempo para cada coisa.
Cada fotografia tem um histórico de afetos, fatos. Simone está, em certa medida, manuseando tudo isso. É a ambição da artista. Emoção aliada à técnica. “As pessoas, em vez de estarem presentes [nas situações], começam a se deixar mediar por imagens. Minha maneira de falar disso é trazendo a imagem para o espaço, porque é isso que ela se tornou, um substituto do corpo presente”, ela diz. Simone dá corpo à imagem. E, no registro onde ela está no papel de Shirley , no papel fotográfico impresso para servir de padrão de cores, é para o seu pai que ela sorri, e não para a câmera, não é pose para rede social. Todas as técnicas do mundo não valem uma emoção autêntica.

André Sheik, junho de 2016

 

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1   Em seu texto O ato criador (1965).
2   Na gravura número 43 da série
Os caprichos (1799).
3   Como eram chamadas as modelos que posavam nos cartões usados por laboratórios de fotografia para calibrar os tons de pele, sombras e luz durante o processo de impressão.

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