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Pequeno ensaio sobre o trabalho de Simone Cupello

Invisível latente

 

A fotografia, enquanto superfície de papel onde foi fixada uma imagem, é devolvida por Simone ao mundo material como um tipo de achado arqueológico. As pilhas de fotos escavadas testemunham uma história coletiva de consumo de imagens. Poderíamos pensar que o trabalho da artista leva ao paroxismo a impossibilidade da fotografia, bem simbólico próprio da era da reprodutibilidade, possuir autenticidade e conduzir a tradição. Os maços de fotos cumprem no espaço, de modo topológico, o papel que, na dimensão temporal, caberia à antiguidade. Uma escultura de pilhas de fotografias é como tornar a imagem tátil, extensa. No mundo pós-histórico, em que imagens cabem em pen- drives e podem ser alteradas à vontade sem deixar vestígios, só mudando a quantidade de bytes, os maços de fotos de Simone estão além do contemporâneo. Nos fazem, em meio a tantas “imagens pretendentes”, que se arrogam à visibilidade total, estranhá-las, desconhecê-las, esquecê-las - do reino do simbólico, propriamente humano, levando-nos ao totalmente outro - mineral ou vegetal. Poderíamos pensar numa espécie de arqueologia de Sísifo, que tem o seu arque ao mesmo tempo num fazer no agora que se revela fundante, embora infinito. Daí a presença de totens, marcos, lápides, numa associação tanto com formas da natureza quanto da ruína civilizacional, afastando a fotografia do seu momento tecnológico, contíguo ao nosso, para torná-la distante, como algo que não nos pertence.

 

Podemos dizer que, como num processo de emulsão fotográfica ao contrário, as partículas sensíveis à luz são ocultadas e o que é exposto é o próprio papel em suas nuances, do mais amarelecido ao mais branco. A multiplicidade da imagem contemporânea então pode ganhar forma e aparecer como uma exposição do próprio material, numa paradoxal saturação minimalista em que a repetição é um recurso para mostrá-la como corpo. Assim como somos constituídos de imagens, que nos atingem de modo físico, o corpo abriga os sonhos. Ao lançar mão de maços de fotos para dar volume à imagem, a memória que vem à tona é similar ao achado de um sítio arqueológico em que o arcaico é, ao mesmo tempo, o novo. A imagem, como nos sonhos, não se atualiza senão em outra imagem - casulos, mantos, peles, pedras, erosões, organismos. O ato-falho, o lapso permanece lá, invisível latente.

Fernando Gerheim

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