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ESTRATÉGIA PARA FAZER FLORESCER FOTOGRAFIAS DE JARDINS

 

Toda fotografia é resultante da observação de uma determinada forma no espaço. Toda forma aprisionada num suporte fotográfico reivindica um par de olhos que a escaneie. Todo par de olhos, por sua vez, necessita ainda que parcialmente decifrar os signos que se desrendem da superfície impressa.

Mas e se a fotografia se rebelar contra o Enigma da Esfinge? E se, diante da impositiva proposição “decifra-me ou devoro-te”, ela convocar não apenas a percepção visual, mas todo o nosso corpo para performar diante de um conjunto de imagens que desenham um volume a levitar no espaço?

As obras recentes da artista Simone Cupello problematizam nossa relação estandardizada com os acervos fotográficos ao conferir ao suporte, o corpo da fotografia, o mesmo protagonismo que devotamos às imagens.

Acomodadas em álbuns, esquecidas em envelopes, organizadas em gavetas ou em antigas caixas de sapato, as fotografias familiares, quando revisitadas, são vistas geralmente em ordem sequencial, uma a uma ou em pequenos conjuntos assentados em uma superfície. Vistas dessa forma, suscitam lembranças, emoções fortuitas, e geram conexões entre tempos e espaços distintos por meio de leituras em espirais, as quais o filósofo Vilém Flusser denominou “magia”.

Embora atue sobre cópias fotográficas vernaculares, distanciando-se dos arquivos digitais, Cupello diz não ter interesse pelas memórias iconográficas, mas sim pela interação das pessoas com a matéria fotográfica. A magia da observação das imagens, que, em geral, tem seu epicentro na súbita e atordoante ressurreição do passado no presente que elas ensejam, para a artista está deslocada para a observação do corpo fotográfico, responsável por agenciar esse paradoxo temporal e espacial. A sensualidade da anatomia desse corpo significante, nas estratégias de Cupello, projeta-se no espaço tendo por força motriz uma dinâmica coreográfica, orquestrada por formas e tons, que gera uma instância volumétrica.

Para construir a obra “Jardim de Yeda”, a artista atuou sobre o acervo de uma pessoa, que ela desconhece, e para a qual deu o pseudônimo de Yeda. O conjunto totalizava cerca de 2 mil fotografias realizadas em inúmeras viagens pelo mundo ao longo de 30 anos. Desconsiderando imagens nas quais apareciam pessoas, a artista organizou grupos de fotografias do que se revelou o foco de interesse de Yeda: flores, jardins, esculturas de jardim, florestas, animais na mata, grandes paisagens, castelos bucólicos, ruínas gregas, canteiros de flores nas cidades, flores em vasos em hotéis e restaurantes.

Criando justaposições das imagens por analogias cromáticas e de texturas, a artista investiu num curioso percurso que desvela a relação de êxtase de Yeda com o gesto fotográfico, ao mesmo tempo que inspira um volume que se edifica por sobreposições. Ao fim desse processo temos não mais um conjunto de fotografias que se prestam a uma leitura linear, mas um organismo que pulsa no espaço e passa a reivindicar não apenas a percepção visual do espectador, mas todas as suas faculdades sensíveis.

Eis que as formas, outrora aprisionadas na superfície, libertam-se por meio de uma inesperada tridimensionalidade que subordina as partes ao todo. Gera-se, assim, um renovado sistema perceptivo, nos quais as noções de distância e proximidade, semelhança e diferença, equilíbrio e simetria e articulação entre figura e fundo transbordam das partes para a espessura desse organismo flutuante que materializa, em potência, as aventuras da fotógrafa viajante. Aquilo que fenece nas fotografias, por entropia e justaposições, floresce plenamente, como magia, no jardim de Yeda.

Eder Chiodetto, 2018

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